Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali,
uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés
e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola
pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito
porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar,
se perde de si mesma.
{Marina Colasanti}
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